Ruy Sarinho escreve artigo sobre o poeta João Furiba

Hoje tem cantoria no Céu: Pinto do Monteiro recebe João Furiba, sob as luzes das estrelas

Por Ruy Sarinho:

Êita whatsapp filho duma égua magra pra trazer notícia triste!

Recebi no início dessa manhã, mensagem do meu amigo de fé Ronaldo Elesbão, radialista, poeta, com graduações e pós em diversas áreas ligadas ao meio rural, diretor da Rádio Custódia FM, naquela Cidade do Sertão pernambucano do Moxotó, e que ainda na madrugada comanda o Programa A Hora do Leite, a informação do encantamento de João Batista Bernardo – o João Furiba, apontado pelo também violeiro Antônio Lisboa como o maior cantador de repente que ele conheceu. Nesta quinta-feira, 31, na Cidade sertaneja de Cajazeiras, na Paraíba. Com certeza, João Furiba foi o maior e melhor na questão de fazer da viola e do repente uma imensa brincadeira, com improvisos jocosos, inteligentes, que desmontavam qualquer outro desafiante. Talvez daí, tenha surgido apecha de que gostava de mentira.

Confesso que meus olhos estão cheios d’águaque mareja e lubrifica o meu interior, fazendo rodar na minha cabeçatodo um filme de muitos dos registros desde que conheci João Furiba, em 1982, se não me engano.

Perdoe-me quem for ler essa matéria, porque ela será longa. Apesar de ter pouco mais, ou pouco menos, metro e meio de gente, João Furiba é um gigante e não ficarei medindo centímetro, nem metro pra colocar um ponto final aqui. Alguns sites e blogs dizem que ele tinha 88 anos, outros, 100 (aqui: https://www.facebook.com/poesiapopulardebelojardim/photos/a-hist%C3%B3ria-do-poeta-repentista-jo%C3%A3o-furibapoeta-popular-violeiro-repentista-jo%C3%A3o/288896917939172 e aqui: http://radarpb.com.br/poeta-joao-furiba-comemora-seus-100-anos-de-vida-em-triunfo/). Não importa se são 88 ou 100, a grandeza de Furiba ultrapassa séculos para quem ama a cultura popular, a capacidade de se criaroimproviso verdadeiro, o repente. O limite do tamanho deste texto será dado por minha alma, pelo meu interior, por meu sentimento.

Vou começar, então, pelo começo. Conheci essa figura única da cantoria nordestina, um genial brincante, durante os inesquecíveis e insubstituíveis Torneios de Repentistas de Olinda, criado e promovido por dezoito anos pelo meu Amigo-Irmão ítalo-olindense GiusepeBaccaro, tido quase como um Pai por todos os poetas populares, repentistas, cordelistas e demais artistas da nossa tão abandonada e desvalorizada cultura popular, tratada pejorativamente pela grande maioria da tal elite acadêmica.

Um ano depois, em 1983, na conclusão do curso de Jornalismo da Universidade Católica de Pernambuco, a Unicap, dois concluintes queriam homenagear o empresário que acabava de se instalar em Pernambuco para comandar a Empresa Jornal do Comércio, João Carlos Paes de Mendonça, como patrono da turma. Discordei de imediato e apresentei um projeto alternativopara que fizéssemos da nossa conclusão aquilo que sempre deve ser feito no jornalismo, denunciar as desigualdades, as injustiças sociais e o esquecimento das nossas raízes, da nossa verdadeira cultura, a cultura popular das mais ricas do mundo, escolhendo como Patrono o repentistaconsiderado como o maior de todos, Pinto do Monteiro. O projeto foi aprovado quase que pela totalidade do grupo de formandos. O convite foi um cordel escrito por DelarmeMonteiro, já praticamente cego, que escreveu em folhas de papel pautado, as quais, guardo como um troféu,denunciando o preconceito e desprezo que se tinha com a cultura popular, enquanto desfilava nas folhas do cordel os nomes dos formandos, professores, homenageados etc. Em vez da placa de metal, um grande painel em folha de Eucatex, pintado por ninguém menos que Bajado – O Artista de Olinda (Infelizmente, essa placa parece que não foi conservada pela Unicap, sumiu.), mostrando um repórter, um gazeteiro entregando jornais e os nomes dos alunos. Também um desconhecido artesão do barro de Goiana foi contratado para produzir estatuetas representando Pinto do Monteiro e demais homenageados. E aí, minha aproximação com João Furiba e a maioria dos cantadores da época, incluindo Pinto do Monteiro, com quem tive a felicidade e o prazer de fazer duas ou três viagens no meu chevetevéio, de Sertânia a Olinda, ida e volta. Até então, não se tinha notícia de cantador de viola aparecendo nas telinhas de televisão no Estado.

Depois de diversos torneios de repentistas, por todos os anos que se seguiram, minha convivência com João Furiba foi muito importante, na bucólica Casa das Crianças dirigida por Baccaro, na subida da Igreja do Monte, Bonsucesso, aqui em Olinda. Nesse ambiente viviam o saudoso Sinézio Pereira, grande líder dos poetas populares, e Seu João, um maravilhoso fabricante e consertador de violas, amado e sempre procurado pelos melhores violeiros. Também integrava a Casa da Criança, o Mestre Salu da Rabeca, que ensinava crianças e adolescentes a tocarem o instrumento.

Mas, a minha aproximação maior com João Furiba se deu em 1994. Ano da terceira e última Caravana da Cultura Popular, sob o tema da Saúde, criada e dirigida por Giusepe Baccaro. Fui na caravana como assessor de imprensa e ainda contratado pelo Diario de Pernambuco, então sob o comando editorial de Ivan Maurício, outro amante e defensor da cultura popular, percorrendo por 25 dias, se não me engano, por 23 cidades de todo o Nordeste. Experiência que não tem palavras pra se descrever, pela intensidade com que foi feita. Só pra ilustrar, além dos maiores poetas da época, como o próprio João Furiba, Louro Branco, João Paraibano, os Nonatos, Antônio Lisboa, Edmilson Ferreira, Edezel Pereira, Oliveira de Panelas, Ivanildo Vilanova,Cachimbinho, Zé Matias, Pinto, Rouxinol, Sebastião Dias, Raimundo Caetano, Jorge Macedo, Zé de Almeida, Manoel Laurindo, entre ouros, ainda acompanhavam o grupo o escritor cearense e diretor da viagem, Ronaldo Correia de Brito, o ator e diretor de teatro, Manoel Constantino, os atores Buarque de Aquino e Ivonete Melo e Baccaro. Além desses andantes, em algumas cidades se aprochegavam outros, como Bule-Bule, em Camaçari; Geraldo Amâncio, em Fortaleza, e Chico Pedrosa, em sua Feira de Santana. Segundo Antônio Lisboa, hoje, meu maior amigo da viola, João Furiba foi um dos poucos repentistas que participou das três caravanas de Baccaro: a de 1979, da Anistia, em Brasília, e a das Diretas Já, em 1987, em São Paulo.

Como ninguém é de ferro, depois de conversar aqui com Antônio Lisboa, pelo whatsapp que nunca será o mesmo maldito de 2018 das fakenews do milico raivoso, continuo a escrever agora com um copinho de barro na mão cheinho de uma caninha de Jambu, que adormece a garganta, que ganhei de MarcosMucarbel Junior, chefe de minha amada Cláudia Rocha, pedagoga social da gota serenade boa. E aí, Lisboa me passou alguns improvisos nos desafios em que João Furibadava o nó nos seus companheiros de cantorias. “Ruy, vou relatar aqui algumas estrofes de que a gente estava falando. Na primeira, numa cantoria de pé de parede depois de um festival, o poeta Daudete Bandeira disse no desafio que ouviu dizer que Furiba tinha comprado uma rádio em Serra Talhada. E João Furiba respondeu no ato: ‘Ela por mim foi comprada/ por um milhão de cruzeiros/ o meu plano era deixar/ a rádio para meus herdeiros/ depois, resolvi doá-la/ pra trinta e dois violeiros’. Esse era João Furiba, ele tinha a facilidade de brincar com a verdade, com a história da poesia, era genial”, conclui Antônio Lisboa.

Lisboa lembra mais duas estrofes criadas de supetão por João Furiba. Em um festival em Mossoró, Terra de Antônio Lisboa, no Rio Grande do Norte, deram o assunto – por que comecei cantar – e o pequenino-gigante repentista solapou de primeira: “Cidadão, euvou dizer/ porque comecei cantar/ meu pai era muito pobre/ e eu não podia estudar/ sem presença pra emprego/ e sem força pra trabalhar”. Noutra cantoria dele com Ivanildo Vilanova, que iria cantar com Louro Branco, Furiba soube que Louro não iria e foi pro lugardo festival e ficou por ali, como quem não quer nada com coisa nenhuma e terminou incluído na festa. Lá pras tantas, Ivanildo Vilanova disparou: “O que eu vinha/ fazer com Louro/ vou fazer/ com João Batista.” Segundo o relato de Antônio Lisboa, o pequenino cantador não se intimidou e prontamente respondeu na viola: “Tire seu carro  da pista/ que meu carro vemsem freio/ tinha graça eu vim aqui/ como quem dá um passeio/ sentar no banco dos réus/ e pagar um processo alheio”.

Já com o saboroso gosto da cachacinha de Jambu começando a adormecer também osmeus lábios, fui alertado por Antônio Lisboa de que uma pessoa acaba de escrever um comentário iniciando um elogio, na verdade preconceituoso, a João Furiba, ao afirmar: “Apesar de ser analfabeto…”, continuando com as citações ao poeta que se encantou. E aí vai uma boa notícia pra quem conseguiu me aguentar até agora, o ponto final desses escrevinhamentos está se aproximando. Pode dar um Aleluia! Mas, antes de terminar nos finalmentes, vou meter o cacete nesse tipo de comentário. Nossa elite formada nas academias e, depois das eleições de 2018, doutorada pela UniversiSapp das fake News e nas rodas elitistas de Orlando do Pateta, adora esse tipo de coisa quando escreve sobre pessoas geniais, inteligentíssimas, mas que não vêm de berço dourado. É aquele negócio do ranço da Casa Grande, dos escravocratas que hoje já estão fora do armário, sem escrúpulos nenhum. E isto me arreta. Uma grande vítima desse preconceito é o maior Presidente que o Brasil já teve, e terá, por uns quinhentos anos a mais, Luiz Inácio Lula da Silva. Certa vez, uma colunista política provinciana afirmou em sua coluna que Lula era um ‘analfabeto funcional”. Na época, eu respondi a essa senhora que Lula era mais alfabetizado do que todos nós que temos um canudo de papel tirado de uma faculdade qualquer. E citei Dom Helder Câmara: “Engana-se quem pensa que o povo não pensa, o povo pensa”.

Mas vamos deixar esses preconceituosos medíocres de lado. A estrela aqui é João Furiba, com aproximadamente metro e meio de altura, mas de uma grandeza na criatividade de dar nó nos doutores mais renomados. Hoje à noite, você pode olhar para o céu e procurar a estrela mais brilhante. Pode ter certeza, é João Furiba, fazendo repente ao lado do anfitrião Pinto do Monteiro. E óie bem direitinho, espie só, que você vai ver na plateia Giusepe Baccaro, Ariano Suassuna, Paulo Freire, Darcy Ribeiro, Miguel Arraes de Alencar, a arte-educadora Mirian da Costa Carvalho Didier, Fernando Gondim da Mota, o Gênio Patativa do Assaré e tantos outros amantes da nossa cultura mais autêntica, que se encantaram antes de João Furiba.

Viva João Furiba! Pronto. Cheguei ao ponto final.

                                                     (Ruy Sarinho, especial para o Blog Aldo Vilela.)